A analogia entre uma Enchente e a Pandemia da Covid-19
Prof. Valmir Heckler
O
texto é uma analogia, com o propósito de provocar ideias e, se possível,
encontrar interlocutores. Esse é o único sentido desta escrita.
Todo
meu período de ser criança e até minha adolescência (17 anos), eu vivi no
campo, em uma propriedade rural, da agricultura familiar, em que passava um
rio, o Buricá, o mesmo que leva a água para a população da Cidade de Três de
Maio. Isso na região noroeste do Estado do RS. Onde aprendi a pescar, nadar,
brincar com a água em dias de verão e a analisar enchentes, ainda que de forma
amadora.
Lembro
que, em épocas chuvosas, as enchentes às vezes duravam uma, duas ou mais
semanas. Não era possível sair de casa ou ir à escola. As notícias e
informações chegavam via rádio, ou se um vizinho compartilhava. A televisão,
preto e branco, somente em horários nobres, isso quando não faltava energia
elétrica.
Eu
era muito criança, mas ainda me lembro de um funeral em que o transporte
precisou ser realizado em canoas. Era uma daquelas enormes enchentes, não me
lembro o ano, provavelmente bem no início da década de 1980. A morte por si só
já é algo impactante para qualquer pessoa, imaginem para uma criança. Assistir
um cortejo fúnebre sobre águas de uma enchente é uma lembrança que carrego
comigo, mesmo que passadas quase quatro (4) décadas. Com vários dias seguidos
de fortes chuvas, as pontes estavam imersas. Chegar do outro do lado do rio,
foi um grande desafio daquelas pessoas envolvidas com a dor da morte.
Atualmente
esse tipo de enchente não é mais muito comum nesse rio, em função das mudanças
climáticas. Registro em minha memória que duas ou três semanas parecia para
mim, criança, um tempo interminável.
A
gente sabia que, depois de uma enchente, o rio deixava a lama, os rastros da
destruição na fauna e flora. Trazia impactos fortes sobre nossa economia
familiar, pois se perdia animais da propriedade e, muitas vezes, parte das
plantações. Recuperar as lavouras sempre era um desafio. A gente superou todos
os desafios de forma coletiva. Não era só impacto na economia. Às vezes também
tinha o registro da morte por acidente de alguma pessoa de comunidades
próximas. Essa vida não era passível de se recuperar, diferente da economia.
Nessa
semana, ao analisar aspectos da pandemia da Covid-19, pensei nas pessoas que
precisavam atravessar o referido rio, mesmo em época de enchentes. Usar canoa
ou nadar era uma solução. Nadar e/ou remar naquelas águas envolvia técnicas,
cuidados especiais para não se perder o fôlego e/ou não ser atingido por
madeiras, animais mortos no meio do caminho. Perder o fôlego significava que a
correnteza do rio levaria você. Indicava possivelmente a sua morte, caso não
tivesse alguém habilitado e com os recursos suficientes para lhe socorrer.
A
pandemia provocada pelo novo coronavírus teve data de início. Diferente da
Enchente, não sabemos quando será o seu fim e nem podemos saber exatamente como
ela irá se comportar. As enchentes muitos conhecem, sabem como elas se
comportam. São temporárias. A Pandemia não. É algo novo e diferente para todos
nós. Podemos dizer em forma de analogia, pautada nos estudos da Ciência, que
teremos ciclos de enchentes permanentes.
O
tempo, nesse caso, não será de duas, três ou quatro semanas de enchente, mas de
longos meses. Se não prevenirmos e assumirmos conceitos e técnicas dos
especialistas, seremos conduzidos para o oceano. Assim como acontece com as
águas de um rio. As enchentes aceleram esse processo. Se tivermos sistemas de
saúde organizados e não lotados, podemos dizer que esse rio vai nos conduzir
até um lago, lagoa ou laguna. Águas um pouco mais calmas. Espero que sim.
No
Oceano, a correnteza é muito diferente. Outras complexidades surgem. É como o
caos, da falta de leitos no sistema de saúde e/ou capacidades de nossos
cemitérios, como já são os casos registrados em alguns relatos no Brasil.
Em
uma pandemia, como a do novo coronavírus, não temos como dizer: não quero
atravessar esse rio. Todos já estamos nadando. Mesmo aqueles que ainda não
aceitaram a enchente ou não a visualizaram. E como tem pessoas que negam a
chegada dessa enchente! Também gostaria de acreditar que ela não existe, mas
isso não é possível. Diferente de minha época de criança, agora temos acessos a
muitas informações via tecnologias digitais. Aí entra outro desafio: ter fontes
seguras de informações e saber interpretá-las.
Infelizmente,
em mais de 30 dias do início da enchente, poucos de nós aprendemos a nadar.
Muitos estão se deixando levar pela correnteza, não é? Parece mais fácil dizer:
comigo nada vai acontecer, isso é uma invenção. Acorda meu amigo. O nível da
água está subindo e rápido em nosso país.
Alerto
que, no Brasil, estamos apenas no início do referido nado ou na forma de remar.
Nadar, remar ou navegar, aqui, tem um único sentido, que é o de atravessar o
Rio da Pandemia. Queremos e precisamos chegar ao outro lado, a uma margem
segura. Essa margem ainda não conhecemos, pois ninguém de nós enfrentou esse
tipo de enchente e travessia, não é mesmo? Já perdemos muitas vidas, pois os
obstáculos criados e potencializados por alguns governantes são enormes.
Até
parece que os referidos governantes assumem estarmos em um "tipo de
dilúvio". Parecem ter a certeza de já terem construído a "Arca de
Noé" e escolhido quem irá navegar nela quando dizem que serão os jovens e
não os idosos "a terem" a possibilidade de lutar por um espaço na
referida arca, um absurdo. A Pandemia não pode ser assumida como um dilúvio.
Essa
é uma enchente que está acontecendo em vários rios do mundo. Uma enchente
global que se interliga, pois as nuvens que provocam e ampliam a inundação são
as mesmas. São pessoas que carregam e espalham o vírus. Fazer as nuvens não se movimentarem e circularem
parece ser o grande desafio.
Diferente
da Enchente, diante da pandemia não temos como resgatar os nadadores. Muito
menos podemos abraçar e acolher familiares que já perderam vidas. É preciso
assumir que não existe rever plano de nado e/ou navegação. Não temos tempo para
amadores. No Brasil atual, nem uma estratégia definida temos. Aliás, desculpem,
parece que temos uma nova agora: a de terminar a "Arca" e criar os
critérios de quais jovens queremos. Seriam os ricos na classe preferencial
e...? Quando tínhamos uma equipe no Ministério da Saúde, que estava nos
indicando um possível caminho, parece que colocamos o projeto da
"Arca" acima de tudo e de todos.
Estamos
com enormes dificuldades de prevenir para que o sistema não vire o caos e a
correnteza do rio comece a arrastar mais pessoas em uma velocidade maior. Em
muitos lugares, as primeiras águas da enchente já chegaram ao Oceano.
Descobriu-se um verdadeiro caos.
Muitos
não querem ESCUTAR as técnicas dos nadadores e/ou remadores profissionais.
Ignoram e assumem o discurso daquele que consideram o seu líder. Seria ele e
você um defensor do projeto da "Arca"? Pois, parece que assumem a
Pandemia como uma enchente previsível. Não é, infelizmente.
Importante
assumir que estamos todos no mesmo nado, no rio da Pandemia. Claro, nem todos.
Lembre daqueles que estão na lista da tal Arca. Não parece ser ninguém da minha
e da sua família.
Ao
irmos para a rua, nos transformamos em nuvens. Ampliamos de forma exponencial o
potencial da enchente. Existe um aumento diário do volume de contaminados, como
forma de registro do crescimento da força da correnteza, o que representa o
aumento exponencial das mortes.
Nesse
cenário caótico de chegada ao mar ou oceano, não existe como socorrer todos,
por falta de recursos materiais e pessoas. Por isso, o nado precisa ser sincronizado,
em tempo de ficarmos no leito do rio, onde ainda temos espaço e os recursos
disponíveis.
Observo
que a temporada das chuvas só está no início, alimentada pelas nuvens de
transmissores. Afinal, perdemos a paciência com a tal "enchente", não
é mesmo? Para piorar, tem o governo que joga palavras que, como o vento,
impulsiona as nuvens e é contra os nadadores e navegadores profissionais. Esses
profissionais que, com conhecimento técnico e científico, nos auxiliam, ensinam
a nadar e construir embarcações confiáveis.
Temos
somente uma única alternativa para atravessar esse Rio. Precisamos nadar, remar
e/ou constituir embarcações com competência, com calma, e respirar e usar
técnicas da Ciência, se quisermos chegar vivos ao outro lado desse Rio. Não
deixe que essa permanente enchente, com sua correnteza, nos conduza juntos para
o oceano.
Nossa
missão deve ser não deixar perder ninguém. Nadar de forma muito atenta e, se
possível, ESCUTAR os pedidos de socorro a nossa volta. Mudar de rota, quando necessário,
sob a orientação da Ciência. Se possível, construirmos canoas, barcos e/ou
outras formas de navegação com os materiais que temos. Precisamos fazer isso no
meio da correnteza. Um grande desafio. Tenho certeza que gastar todo nosso
material com a "Arca" não é a solução. Ela é muito limitada.
Seguimos,
pois o leito desse rio já é muito grande e aumentará com a movimentação das
nuvens. Ainda não visualizo a margem do
outro lado. Observo e muito, voluntários, universidades, instituições, bons
líderes comunitários, equipes de saúde e cientistas que nos ensinam, auxiliam a
nadar e a construir embarcações confiáveis no meio desse processo de travessia
de uma grande enchente do rio. Não é o rio Buricá, das minhas lembranças. É
outro, com dimensões assustadoras.
Seguimos,
pois se ainda não alcançamos a margem, temos a boa notícia de que ela existe. E
lembre-se de minha época de criança. Evitem expor nossas crianças aos cortejos
fúnebres, como aquele que eu vi sobre as águas de uma enchente. As crianças e
os adultos não precisam dessas lembranças.
Fiquem todos bem. 🙌🙌
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