Andarilhar virtualmente em um contexto escolar rural de Rio Grande(RS)
Autor: Prof. Dr. Sicero Agostinho Miranda
Contato: siceromiranda@gmail.com
Desde o
início do cancelamento das aulas na Rede Municipal de Rio Grande(RS), o sentimento de andarilhar tem sido presente.
Andarilhamos no sentido freiriano da construção, encharcados
de experiências e vivências no processo de humanização. Procuramos “ser mais”
a partir dos movimentos de buscar estar com o
outro, reconhecendo-o como legítimo outro (MATURANA, 2009). Para Freire (2005), o “Ser Mais” é um sujeito que nunca é, mas que está sendo, cuja concepção não se situa no sentido
pejorativo ou negativo, mas sim comparado com o que ocorre com a própria história
que está em constante mudança, sem esquecer que somos marcados por culturas
passadas de geração em geração.
Acredito na pedagogia de Freire, uma pedagogia
do movimento. Neste viés da andarilhagem,
Carlos Rodrigues Brandão (2008, p 40) expressou bem essa “vocação coerentemente
errante e andarilha” da vida e do pensamento freiriano. Segundo Brandão,
[...]várias razões que nos fazem pendular entre o “estar aqui” e o “partir”,
“ir para”: Há os que se deslocam porque querem [os viajantes, os turistas], os
que se deslocam porque crêem [os peregrinos, romeiros], os que se deslocam
porque precisam [os migrantes da fome, os exilados] e há os que se deslocam
porque devem [os engajados - para usar uma expressão cara aos dos anos 1960 -
os comprometidos com o outro, com uma causa].
Não discutirei a universalização da Educação,
até porque na minha leitura ainda é uma Inédito
Viável, mas pretendo corroborar com a discussão do acesso a ela em meio a
essa pandemia do novo
coronavírus (Covid-19). Também não tenho
pretensões de trazer nenhuma solução, até porque neste momento não passaria de
uma mera especulação, mas relatarei minhas experiências na gestão de uma escola municipal de Rio Grande.
Este contexto
de vivência, a E.M.E.F. Cristóvão Pereira de Abreu, está localizada na Ilha da
Torotama, aproximadamente a 68 km da Secretaria de Município da Educação
(SMEd), às margens da Laguna dos Patos, com acesso fluvial e terrestre,
pertence ao distrito de Povo Novo, município de Rio Grande - RS. A principal
atividade da comunidade é a pesca. Em consequência da localização geográfica, a comunidade fica muito isolada da cidade,
fazendo com que a escola seja um importante elo de acesso à informação e à experiência entre o município e a localidade. Uma
Escola do Campo que atende a 107 educandos(as)
em dois turnos, e oferece Educação Infantil,
Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental.
Da série “Coisas que a Educação possibilita”, a escola resiste, se reinventa em tempo de
pandemia, mas não perde sua essência, filosofia e papel social. Antes
mesmo de relatar nossas ações, preciso demarcar que o coletivo Cristóvão é
contra a qualquer projeto de Educação Domiciliar e Ensino a Distância (EaD) na
Educação Básica. Dito isso, ressaltamos que as ações aqui relatadas,
desenvolvidas no Cristóvão, não tem nenhuma relação com essas propostas que
estão em discussão, independente da esfera governamental que as defendam.
Não realizamos EaD, pois não temos uma estrutura
capaz de dar conta da modalidade e muito menos suprimos as especificidades
exigidas por esta. Também não fazemos Educação Domiciliar, pois não orientamos
os pais e/ou responsáveis ou quem acompanha nossos estudantes em casa a
desenvolver um processo de escolarização. Ressaltamos que
qualquer experiência relatada, por mais exitosa que seja, jamais substituirá as vivências cotidianas na escola e as
rotinas construídas, encharcada de saberes, sabores e emoções.
O que estamos fazendo, após orientações da
equipe pedagógica da Secretaria de Município da
Educação (SMEd), é encontrar uma forma de estar
próximo aos(às) nossos(as) educandos(as), estabelecendo uma rotina de tempo e
ações, com atividades que mantenham eles focados nos estudos. Essas
estratégias, em constantes adaptações e reinvenção, vislumbram reforçar alguns
conceitos estudados anteriormente, ou pré-requisito para futuros estudos, de
forma lúdica, valorizando-se os saberes locais.
Estamos trabalhando com atividades de interação,
mediadas por tecnologias digitais, desde o
primeiro momento em que as aulas foram suspensas, segundo orientações
registradas no Decreto Municipal 17054/2020, de 23 de março de 2019, e decretos posteriores que
ampliam a suspensão. Entendemos a necessidade de “estar com”, pois, para o nosso coletivo,
a escola não se resume apenas a parede, ela não precisa estar em endereço fixo. Precisamos tornar o Cristóvão ainda mais andarilho,
estar na casa do(as) educando(as) A, B, C, D, etc.
Nossas ações estão voltadas a ontologia do Ser na perspectiva freiriana, na qual entendemos o homem como um
Ser que está em permanente processo de crescimento, que procura se aprimorar
continuamente, buscando sempre novas aprendizagens,
na luta pela humanização. Essa andarilhagem
virtual foi tendo, ou está tendo, seus desdobramentos todo tempo. Ganhou forma, ações, reflexões e novas ações.
O primeiro passo foi realizar um estudo do
contexto local, partindo-se da Leitura de Mundo (estudo da realidade).
Nesse processo dialógico, surgiu a definição
de qual ferramenta seria utilizada: facebook,
instagram ou whatsapp. Posteriormente, definimos o facebook
como estratégia de divulgação de informações para comunidade em geral. A
interação com estudantes e suas famílias ficou apenas entre
grupos no whatsapp (ferramenta
já utilizada por todos). Além da definição, descobrimos que 91 dos 107
estudantes, ou seja, 85% tinham acesso à internet.
Destes, a grande maioria, aproximadamente 80% tem acesso residencial e 20%
dispõe da internet móvel em seus
celulares. Para um contexto rural, esses dados chamaram muito a atenção.
O segundo
passo foi a construção das atividades pelos(as) professores(as), o que se apresentou com um grande desafio, um pouco
pela resistência ao uso das tecnologias e outro pela dificuldade do
distanciamento físico, como estabelecer as relações, principalmente, a participação da família. Foi unânime entre os(as) educadores(as) que nossas ações
teriam que ir ao encontro de despertar uma nova forma de relação desses saberes
com as experiências vividas. Alguns relataram suas dificuldades, tanto de
acesso como de utilização das ferramentas digitais.
Segue um diálogo em um grupo de whatsapp da escola:
Educ. A: Alguns livros não conseguem carregar.
Educ. C: Minha internet nem abri
Educ. D: Não carrega
Educ. B: Aperta bem no meio da atividade para aparecer fazer download.
Educ. B: Clica no fazer download e vai salvar na tua pasta de arquivo do
celular
Educ. A: Meu celular trava de vez em quando!
(Grupo de whatsapp- 24/03/2020)
Cabe ressaltar a
dinâmica, o auxílio e o incentivo entre os(as)
educadores(as). Na sequência, apresento uma
conversa entre duas educadoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da
escola na ocasião da construção de algumas atividades com
utilização do recurso audiovisual, o vídeo:
Educ. C: Eu não consigo gravar vídeo!!!Eu não consigo ficar sem rir!!
Educ. C: Mas vou me esforçar kkk
Educ. E: Pede para ela (filha da
professora) te gravar!!
Educ. E: É melhor outra pessoa gravando!!
Educ. C: Vamos virar youtubers
Educ. E: Vamos treinar no espelho Educ. C!!!
Educ. C: Chega na hora não vai kkk
(Grupo de whatsapp- 03/04/2020)
O
terceiro momento foi marcado pelas expectativas em relação aos retornos dos estudantes e de suas famílias, diante
das ações propostas. O diálogo a seguir mostra que os(as) educadores(as), ao
propor as atividades, ainda tinham algumas dúvidas em relação a participação e
insegurança sobre os retornos das atividades.
Educ. E: Sim, se eu conseguir alcançar um aluno de cada turma, já
estarei contente.
Educ. B: Sim, já combinei. Mando às atividades às 8h e terão todo dia
para realizar.
Educ. E: Vai ser perca de tempo!!
Educ. A: Podem copiar no caderno se não houver possibilidade de
imprimir.
(Grupo de whatsapp- 23/03/2020)
Assim
que os(as) professores(as) perceberam a interação e a
aceitação das famílias pelas atividades propostas, o que gerou mais motivação
em seguir com as ações, bem como buscar outros recursos a serem
ofertados aos(às) estudantes. Outro fator
constatado é que os(as) educandos(as) sem acesso à
internet foram auxiliados por outras
famílias que residem próximo.
Educ. E: Que capricho.
Educ. C: Olha Educ. E nossas
alunas realizando as atividades!!
Educ. E: Para Aluna A e B fica bem complicado pq o Tio A que está
levando o celular para a realização das atividades.
Educ. E: Ainda bem que tem o suporte dele.
Educ. E: Agora ele me explicou, ele passa as atividades para vizinha
delas, a vizinha repassa para elas poderem copiar
Educ. E: Que legal ver as duas irmãs estudando juntinhas.🥰
Educ. B: Muito emocionante e gratificante ver nossos alunos estudando e
se esforçando!!!
Educ. E: É muito bom ver as mães interessadas e caprichosas!!!
Educ. E: Não imaginávamos que seria tão positivo
Educ. E: Pelos menos nisso uma notícia boa
Educ. E: Que estamos propondo algo e eles estão realizando
(Grupo de whatsapp- 08/04/2020)
Após
encontrarmos a melhor forma de interação com os estudantes e famílias, bem como
a aceitação e o interesse pelas atividades
propostas, passamos a buscar outras estratégias de atividades que fossem ao
encontro das necessidades dos(as) educandos(as), em um constante processo de
ação-reflexão-ação. Neste momento, procuramos
explorar outros recursos digitais, nos quais foi possível construir espaços
formativos, reuniões, entre outros, que contribuíram para repensar as
estratégias e construir novas possibilidades pedagógicas.
Estes processos formativos estavam pautados na
constituição do Ser Mais, por entender esses sujeitos e suas interações nesses
espaços como algo singular. Diante disso, precisamos ter um olhar sensível e,
antes de tudo, pressupor um eu, indivíduo, que precisa ser respeitado e ser
avistado como um ser humano social e político, com suas vivências e
experiências.
Por ser uma estratégia nova, por todas as
resistências que temos quanto a utilização das tecnologias digitais, observamos
que, em alguns momentos, os(as)
educadores(as) demonstraram preocupações com a
interação e os tempos das rotinas dos(as) estudantes. É possível identificar
essa inquietação na discussão realizada no grupo das professoras dos Anos
Iniciais:
Educ. D: Os meus respondem em dias alternados, parece que até combinam.
Educ. A: Pois é, estranho, os mesmos são sempre os mesmos que respondem,
normalmente a tardinha.
Educ. E: O quinto ano é tranquilo, fazem tudo e respondem, mas o
terceiro ano oscila, uns somem, outros aparecem.
Educ. F: Gurias acho normal tudo isso, tudo isso é diferente para todos
nós. A gente também passa por isso, tudo novo, diferente para todos nós. Cabe a
nós propor as atividades, incentivar, dar suporte e motivar a participação.
Educ. A: Entendo, sei disso, mas fico o dia inteiro na expectativa de
receber algo, uma solicitação de ajuda.
Educ. F: Já tentaram estabelecer com eles horários de estudos?
Educ. A: Sim, mas o problema que dependemos dos pais, eles estão na lida
do camarão e a maioria só pode a noite, ou à tardinha.
Educ. F: Importante respeitarmos isso.
(Grupo de whatsapp- 17/04/2020)
Diante de todas essas peculiaridades, novas
vivências e experiências, temos a certeza de estar realizando atividades que auxiliam as famílias nas rotinas diárias em meio ao
isolamento social. Assim, a escola cumpre o seu papel social, sempre próxima a
sua comunidade escolar, em alguns momentos
desenvolvendo atividades, em outros orientando e
informando sobre serviços públicos e até mesmo sobre os cuidados para o
enfrentamento à pandemia.
Vislumbra-se aqui, que essas ações nos ajudem a
repensar os currículos, os espaços e os tempos escolares. Que possamos refletir
sobre as convivências dentro do ambiente escolar, principalmente após à
pandemia, na qual passaremos por mudanças e adaptações. Também necessitamos de um olhar atento às tecnologias digitais aliadas aos processos pedagógicos, mas ainda avistamos
fragilidades dentro da formação inicial e continuada dos(as) educadores(as).
Cabe salientar
que nossas famílias, em uma comunidade de pescadores, estão sendo exemplos para
muitos outros contextos, pois na escola Cristóvão as ações tiveram resultados
positivos, porque os pais e/ou responsáveis estão
juntos com seus filhos, participando das estratégias pedagógicas, acompanhando
e motivando os(as) educandos(as).
Concluindo, retomo o título dessa escrita e assumo que,
inicialmente, era “um contexto escolar em constante reinvenção”, mas
após uma provocação, em um espaço também virtual com Profa. Dra. Maria
Do Carmo Galiazzi (FURG) sobre o reinventar a escola, fica
a indagação: tem como
reinventar a escola em um mundo que será outro? Com isso, “numa escola deste mundo novo, temos que só
trazer as coisas boas, como em uma mudança, e que nos desfazemos do que não
importa” (GALIAZZI, 2020 – Conversa via Whatsapp), precisaremos inventar outra escola?
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Andarilhagem. In: STRECK, Danilo R.; REDIN,
Euclides; ZITKOSKI, Jaime J. Dicionário
Paulo Freire. Belo Horizonte: Vozes, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do
oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
MATURANA,
Humberto. Emoções e linguagem na
educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
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